JUSTIFICATIVA
O
encontro entre os pesquisadores de áreas diferentes de conhecimento foi
fundamental ás nossas discussões que deram origem à iniciativa aqui exposta. Em
contato/diálogo entre o grupo “Terreiro da Infância”, coordenado pela
professora-pesquisadora-diretora. Natássia os escritores Cristina Helou Gomide
e Gazy Andraus, a produtora e cineasta Marcela Borela, sentimo-nos instigados a
realizar tal projeto. O grupo “Terreiro da Infância”, como o próprio nome
sugere, trabalha com a infância e tem como método de abordagem a criação
teatral, e a pesquisa referente à transferência da capital, que traz narrativas
de idosos que retratam sua infância, se tornou elo significativo para unir as
produções e fazer desse material algo que possa ser levado a todo Estado de Goiás,
quem sabe, futuramente, para outros espaços do Brasil. Portanto, pensamos que a
criação da peça teatral é importante para a discussão do sujeito goiano, sua
história/memória, além de representar um veículo de divulgação e interpretação
do que temos discutido em nossas áreas de atuação.
A
comemoração de mais de 8 décadas da transferência da Capital da Cidade de Goiás
para Goiânia nos faz pensar na importância de trazer a abordagem da
memória/história nesse marco tão importante para nós. Assim, é importante
tratar do ressentimento dos moradores que perdurava até 1999. Isso, cremos,
está representado na figura da criança, a personagem José no conto “A Saudade
de José”, tanto na forma de texto inspirado na memória dos velhos à época da
transferência da capital, crianças, quanto na Ilustração de Gazy Andraus, que
consegue captar a essência das narrativas e trazer os sentimentos e a
imaginação dessa criança para o papel. Nessa parceria, percebe-se o diálogo
entre a cidade e a memória das pessoas, quando a memória do espaço da cidade
parece estar entremeada por um fato histórico e vice versa. José (aquele que
foi inspirado pela memória da infância do narrador) sente saudade do “tempo”,
do “espaço” e das “relações sociais” presentes na cultura goiana do início do século
XX antes da existência de Goiânia. Ao mesmo tempo, o texto/ilustração, trata
das contradições e perspectivas de dois espaços, as disputas políticas e as
implicações desse momento histórico no centro-oeste no Brasil.
Com
nossa proposta, estamos trazendo à cena, uma discussão fundamental sobre
cultura. A cultura, constantemente re-significada, traz consigo vestígios do
passado e incorpora transformações do presente. Cremos que nossa produção e os
resultados pretendidos são uma forma de firmar nosso compromisso como
educadores e produtores do conhecimento. Acreditamos que a pesquisa
necessariamente precisa retornar aos sujeitos da história, sem “resgatar” a
história, mas sim retomá-la, tendo como base os sujeitos que a compõem, dando
voz e visibilidade a eles. Há aí possibilidades diversas de discussão da
história de Goiás e seus diversos motes. Trata-se de uma ampliação estética e
histórica sobre o tema pesquisado.
Neste
sentido, pretendemos trabalhar com criação coletiva na produção do espetáculo.
A criação coletiva, como modo operante, está agenciados com uma intensa
transformação nas perspectivas do constructo da dramaturgia, do posicionamento
do diretor e da participação do ator no processo. Pontuando brevemente alguns
aspectos acerca da criação coletiva e do processo colaborativo, pode-se dar
ênfase à seguinte citação de Rosyane Trotta:
"Os processos colaborativos embora estejam
associados à prática de um teatro contínuo, geralmente ligada ao trabalho de um
grupo ou companhia, não se constitui como expressão de uma identidade comum,
mas como contraposição e justaposição de diversidades individuais em que o elo
comum e o fio condutor é o espetáculo. Na criação coletiva, o grupo em geral é
anterior ao projeto, já está reunido quando trata de se colocar a pergunta “o
que faremos”, ao passo que os espetáculos produzidos em processo colaborativo
nascem de um projeto pessoal do diretor, que reúne a partir de então a equipe
de que necessita para empreender a criação [...] A criação coletiva, embora
tenha emergido de um contexto histórico específico, não se restringe ao
passado, sendo praticada ainda hoje por grupos cujos integrantes se
responsabilizam não apenas pela cena, mas pelo projeto e sua continuidade [...]
os atores se ocupam tanto das questões cênicas quanto extra-cênicas – produção,
distribuição, divulgação. Pode-se considerar que a qualidade de engajamento e a
continuidade necessárias a esta modalidade teatral exigem uma relação estreita
entre o teatro que se pratica e os valores que orientam a vida pessoal do
artista [...] O efeito daquilo que chamamos “ausência do coletivo” sobre o
processo colaborativo produz uma configuração da autoria muito distinta daquela
encontrada na criação coletiva, uma vez que, pela falta de identidade entre os
participantes, recai sobre o encenador a tarefa de “fabricar” o coletivo
autor" (2006, p.158 – aspas da autora; grifos nossos).
Desta
forma, pretendemos que neste projeto toda a equipe seja envolvida no processo
de montagem do espetáculo, inclusive a autora do fanzine. Faremos um trabalho
de mesa, onde leremos as pesquisas históricas realizadas pelas historiadoras
Cristina Helou e Marcela Borala; juntamente com as teorias específicas acerca
da oralidade e narrativa. Ademais, documentos históricos, fotografias e documentários
sobre a cidade de Goiás e sobre a transferência da capital para Goiânia. Já o
espaço está sendo pensado como lugar de memória, assim como o figurino. A ideia
do coletivo de artistas é pensar as relações entre o corpo espacializado e o
espaço do corpo; e o tempo vivido pelos moradores da cidade de Goiás. O que se
espera, é que a partir do fanzine e das entrevistas realizadas pelas
historiadoras, possamos retomar a experiência de vida dos idosos que habitam a
Cidade de Goiás, dando relevo às narrativas acerca da transferência da Capital.
A direção do espetáculo, pretende com essa práxis constituir uma experiência de
formação (pensando a relação entre História, Arte e Educação) para estudantes e
atores envolvidos no trabalho, além das crianças e adolescentes da Cidade
Livre.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O
drama entendido como teatro é multifacetado, como disse Martin Esslin (1978);
contempla a diferenciação do teatro dramático, onde é predominante a ação – e o
teatro épico – que tem como elemento a narração. Entretanto, o drama entendido
enquanto gênero não abarca o teatro épico. No teatro dramático se pressupõe uma
tensão, um conflito que levará um desenlace; o espectador é conduzido pela ação
sequencial dos acontecimentos (PAVIS, 1999). O teatro épico foi conceituado
pelos encenadores Erwin Piscator e Bertolt Brecht. Para esclarecer essa questão
do ponto de vista formal, Anatol Rosenfeld (2010) abordou as estruturas dos
gêneros lírico, épico e dramático para discutir o teatro épico. Sem reduzir o
sentido dos três gêneros, o autor trouxe o significado substantivo e adjetivo
das formas de expressão e a distinção entre elas, pautado pela teoria
literária:
"Pertencerá à Lírica todo poema todo poema de
extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos
e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir
seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não – de
extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em
situações e eventos. Pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem
os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador.
[...] Costuma haver, sem dúvida, aproximação entre gênero e traço estilístico:
o drama tenderá, em geral, ao dramático, o poema lírico ao lírico e a Épica
(epopeia, novela, romance) ao épico. No fundo, porém, toda obra literária de
certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em
questão, também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros. Não há
poema que não apresente ao menos traços narrativos ligeiros e dificilmente se
encontrará uma peça em que não haja alguns momentos épicos e líricos"
(ROSENFELD, 2010, p.17, 18-19). No que diz respeito aos traços estilísticos
fundamentais do gênero épico, Rosenfeld (2010), afirmou que ele é mais objetivo
que o lírico, uma vez que o mundo objetivo, emancipa-se consideravelmente em
relação à subjetividade do narrador. Este é fundamental na narração, a qual
deve constituir “o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo
narrado)” (ROSENFELD, 2010, p.17).
No poema lírico, o ser humano é solitário, enquanto
na expressão épica, o narrador busca se comunicar com outrem para contar uma
história. Nesse caso, não está em jogo somente o estado de alma individual, mas
estão presentes narrativas que aconteceram a outras pessoas; e há um
deslocamento temporal, visto que a história já aconteceu, ‘foi’. Assim, cria-se
uma distância entre o narrador e o mundo narrado (ROSENFELD, 2010). O que
permite tanto ao sujeito que narra quanto aquele que experiencia a narrativa,
tomar uma atitude mais distanciada e objetiva, o que não exclui a subjetividade
do indivíduo. Do exposto também segue que o narrador, distanciado do mundo
narrado, não finge estar fundido com os personagens de que narra os destinos.
Geralmente finge apenas que presenciou os acontecimentos ou que, de qualquer
modo, está perfeitamente a par deles. De um modo assaz misterioso parece
conhecer até o íntimo das personagens, todos os seus pensamentos e emoções,
como se fosse um pequeno deus onisciente. Mas não finge estar identificado ou
fundido com eles [como acontece na forma dramática]. Sempre conserva uma
distância face a eles. Nunca se transforma neles, não se metamorfoseia. Ao
narrar a estória deles, imitará talvez, quando falam, as suas vozes e esboçará
alguns dos seus gestos e expressões fisionômicas. Mas permanecerá, ao mesmo
tempo, o narrador que apenas mostra ou ilustra como esses personagens se
comportaram, sem que se passe a transformar-se neles. Isso, aliás, seria
difícil, pois não poderia transformar-se sucessivamente em todos eles e ao
mesmo tempo manter a atitude distanciada do narrador (ROSENFELD, 2010, p.17).
No
estilo épico há uma diferenciação entre sujeito e objeto; enquanto nos gêneros
dramático e lírico não há uma diferenciação clara entre sujeito e objeto. Para
Rosenfeld (2010), não há uma oposição sujeito-objeto. Partindo de uma análise
hegeliana, o autor escreveu que na acepção dramática, não ouvimos uma narração
sobre uma ação, como na forma épica; e sim, presenciamos a ação enquanto se vem
originando atualmente, como expressão imediata de sujeitos, como na lírica
(ROSENFELD, 2010, p.29). Para Hegel, a Dramática é superior à Lírica e à Épica.
Divergindo de Hegel, Rosenfeld (2010) não reconheceu superioridade de nenhum
dos gêneros. E mostrou como as mudanças na voz do sujeito nos três gêneros
alteram tanto a percepção do tempo, quanto da ação na perspectiva do
espectador. O pronome da Lírica é o Eu, presente eterno; da Épica o Ele,
pretérito; da Dramática será Tu, Vós, etc. – cujo tempo é o presente que passa
e exprime a atualidade do acontecer. É importante evidenciar que, para além das
categorias fechadas, podemos observar que a forma da peça, que é como o
dramaturgo se posiciona diante da obra a ir para o palco, está relacionada com
o que o gênero exige (PALLOTTINI, 1988). Por isso, a forma da dramaturgia é
fundamental para a composição estética da obra. Benjamin (1994) alegou que
perdemos um tanto da arte de narrar, e com isso, a possibilidade de superar o
empobrecimento humano a partir da experiência:
"Quando se pede
num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a
faculdade de intercambiar experiências. [...] A experiência que passa de pessoa
a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores" (BENJAMIN, 1994,
p. 197-198).
Para
Benjamin (1994), o narrador se conserva no curso da história e talvez não
esteja necessariamente presente entre nós, pois ele é um ente que se mantém à
distância e permanece vivo na existência do tempo. Nós o vemos assim como ele
se apresenta, com distância favorável: “Vistos de uma certa distância, os
traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. [...]
Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse
ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de
extinção” (BENJAMIN, 1994, p. 197). Benjamin (1994) revelou que essa abreviação
da narrativa pela short story “que se emancipou da tradição oral e não mais
permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa
a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia
[...]” (1994, p. 206). A falência do ato de narrar, não é uma característica
moderna, isso vem historicamente se constituindo. Contudo, também firmou que é
no período moderno que a morte da narrativa se consolidou. Com a difusão do
romance pela imprensa, A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma
natureza profundamente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o
romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo
novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se
distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que
ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as
coisas narradas à experiência de seus ouvintes. O romancista segrega-se. A
origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe
dá-los (BENJAMIN, 1994, p. 201). O narrador compartilha o momento da história
contada, precisa de companhia; já o romance só pode ser lido por “uma dama ou
um cavalheiro” solitários. Inversamente, o ato de narrar demanda um nível de
coletividade e de afastamento da imagem do “indivíduo solitário”. Por isso, o
exercício de narrar pode vir a ser uma volta à possibilidade de experiência na
tentativa de tomar à consciência a historicidade e destituir do sujeito este
estado de spleen [tristeza pensativa, melancolia], no qual a atitude está
reificada:
"Não existe mais
consolo para quem está excluído de qualquer experiência... No spleen, o tempo
se reifica; os minutos cobrem o homem, como flocos... No spleen, a percepção do
tempo se torna sobrenaturalmente aguda; cada segundo encontra a consciência em
estado de alerta, para aparar seu choque... O homem que perde a experiência se
sente expulso do calendário" (BENJAMIN apud ROUANET, 2008, p. 51).
A
insuficiência do romance está na base da ação e, por isso, Benjamin expôs uma
teoria que analise e reivindique a narração, a forma épica. Para Benjamin,
"A memória é a
mais épica de todas as faculdades. [...] A reminiscência funda a cadeia da
tradição , que transmite os acontecimentos de geração a geração [...] Tal é a
memória épica e a musa da narração. Mas a esta musa deve se opor outra, a musa
do romance que habita a epopeia, ainda indiferenciada da musa da
narrativa" (1994, p. 210-211, grifos do autor, notas nossas).
Aqui
essa “faculdade” é pra nós imprescindível, tal como se faz urgente a
diferenciação entre a qualidade de memória das formas épica e dramática.
Buscamos com isso, não a memória que assegura a reprodução, e sim, uma memória
que apreende e compreende o curso histórico das coisas, dos eventos, das
pessoas, das experiências vividas. Não idealizamos a memória, porque esta, como
espelhamento da experiência, pode ser idealizada; e as contradições dela
precisam ser expostas. Do contrário, cria-se uma ideia romântica da memória
enquanto musa épica. O autor concluiu que, com o advento do alto capitalismo e
a consolidação da burguesia, a imprensa se tornou um instrumento de poder para
a propagação do romance e a extinção da forma épica. A informação, como nova
forma de comunicação, tornou-se estranha tanto ao romance quanto à narrativa. E
por mais que recebamos diariamente notícias do mundo, tornamo-nos pobres de
histórias surpreendentes. No caráter imediato da informação, reside a forma ‘em
si e para si’. Contrariamente,
“O saber, que vinha
de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido
na tradição –, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse
controlada pela experiência” (BENJAMIN, 1994, p. 203, grifos nossos).
Flávio
Desgranges (2010a), a partir da obra de Benjamin (1994), expõe que a arte de
narrar é uma faculdade épica, vinculada à memória. Como ele afirma, a ausência
de memória individual e coletiva se dá pela ausência do ato de narrar. Deste
modo, forma-se um esvaziamento e uma falência da linguagem. O olhar que
transita por passados distintos, os quais podem vir a ser presentes pela
lembrança, tornam-se esquecidos. Isso prejudica a leitura de mundo, pois a
linguagem na sua potência mais “pura”, a relação entre o eu e o outro, não se
efetivam. E os tempos – presente, passado, futuro – acabam fixos, sem
possibilidade de dialogarem com as experiências vividas pelo sujeito,
individual e coletivamente. Não obstante, a linguagem permanece acéfala, pois
como diz Desgranges (2010a): a natureza da linguagem deveria ser viva, mas ela
só pode viver mediante a um discurso vivo.
"Linguagem que é
intrínseca à própria história, já que o discurso histórico é sempre uma
narrativa [...] fazer história é contar história [...] Pois, na medida em que o
homem só pode receber a história numa transmissão, a história condiciona e
mediatiza o acesso à linguagem" (KRAMER apud DESGRANGES, 2010a, p. 107).
A
linguagem como forma de discurso precisa pensar, portanto, o lugar da palavra,
o sentido do discurso, e o lugar da voz do corpo, da oralidade. O sentido aqui
é elaborado como sendo parte paixão e parte racionalidade refletida: da
corp(oralidade) pertencente também a uma tradição oral. Isso sugere uma
apropriação da história e uma incorporação da compreensão. A resposta reverbera
no corpo vibrátil, o qual eclode na vibração da história, ou seja, na qualidade
de energia empenhada na ação de contar. Quem ouve pode mesmo até sentir sua
história de vida transformar e, quiçá, tornar-se um bom contador de histórias
ou um bom narrador, pois, como afirmou Benjamin: “São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente” (1994, p. 197). E na arte de narrar
comparece junto à voz, a alma, os olhos e as mãos:
“A alma, o olho e a
mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma
prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. [...] Na verdadeira narração,
a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do
trabalho [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 221).
Na
análise de Benjamin (1994) sobre o empobrecimento do homem e sua formação
estética, podemos perceber evidências dos estudos acerca da narração e as
motivações para trabalhar aspectos do teatro épico. Quando o autor apontou a
narração no sentido da experiência, ele inferiu:
“Na narração, o acontecimento é incorporado à vida do narrador, que a
transmite, como experiência, ao ouvinte. É por isso que o narrador deixa nele
seus traços, como o oleiro deixa as marcas de sua mão no vaso de argila”
(BENJAMIN apud ROUANET, 2008, p. 50).
Assim, os vestígios do narrador estão
presentes de diversas formas nas narrações, seja para quem enunciou, seja para
quem ouviu, sentiu, presenciou. A narração pode intensificar a experiência pela
palavra que, segundo Adorno “é função da mediação, de uma experiência
considerável e englobante (ADORNO, 1988, p.274). Tanto a palavra é um discurso
poderoso, quanto a troca de experiências e afetivas entre o eu e o outro.
Na
perspectiva dos educadores-artistas, o que ocorre é que eles podem suscitar no
exercício da mediação o alumbramento, a lembrança, a imaginação, a invenção por
meio de suas próprias memórias e de outrem. Desta forma, ao atualizar as
experiências estéticas – que não necessariamente são artísticas – podem
potencializar a criação, ainda que com consciência da realidade. Sendo que esta
pode se tornar forma de dominação ou de emancipação. As ações criativas como
lugares de formação singular e coletiva são atos de expressão particulares e
universais. Ao motivar essa formação é possível que narrativas ricas surjam e
construam pontes entre subjetividade e objetividade. O ato de narrar, tanto
para quem transmite quanto para quem ouve, exige reciprocidade para que haja
compreensão mútua; o tempo presente é ocupado pela concentração dos
acontecimentos narrados e impele uma atenção dos sujeitos envolvidos na
enunciação. Nesse sentido, Benjamin destacou o aspecto da concentração em
oposição à dispersão, pois:
"As tarefas que
em momentos de crise histórica se colocam ao aparelho perceptivo humano são
insolúveis por meios meramente óticos, baseados na contemplação. Elas podem ser
gradualmente solucionadas por meio da recepção tátil do hábito. Também o
distraído pode habituar-se... Como de resto os indivíduos estão expostos à
tentação de se esquivarem a essas tarefas, a arte pode dar sua contribuição
mais decisiva na medida em que puder mobilizar as massas. É o que ocorre no
cinema. A recepção baseada na dispersão, que se nota com ênfase crescente em
várias esferas da arte e constitui o sintoma de profundas modificações
perceptivas, tem no cinema seu verdadeiro instrumento. Graças a seus efeitos de
choque o cinema vem ao encontro dessa forma de recepção" (BENJAMIN apud
ROUANET, 2008, p. 57).
Quando
ousamos falar em narrativa, antes de qualquer afirmação, faz-se necessário
postular quão vasto é seu universo. Narrativas curtas, longas, em prosa, em
verso, fabulísticas, fantásticas, biografias, autobiografias, entre outras.
Seja qual for o gênero, a narração trará consigo aspectos objetivos e
subjetivos; nos quais estão presentes as próprias contradições históricas do
sujeito. Como diz Suzi Sperber, a oralidade enquanto diferença relativa à
escrita, por exemplo, expõe características “resvaladiças, ou ambíguas, ou
mesmo equivocadas” (2009, p.69). Por isso, a memória trai.
O
teatro conta histórias e no teatro se conta histórias. Todavia, quando falamos
em contar histórias não estamos falando exclusivamente de uma história com
enredo linear (determinado tecnicamente), com início, meio, fim. Falamos,
sobretudo, da criação de outros sentidos para as nossas histórias que vemos,
ouvimos, experimentamos, vivenciamos e experienciamos esteticamente. Aqui
inauguraremos a noção de corp(oralidade), porque como diz Sperber (2009), em
geral,
"a fala – na
oralidade – é estudada isolada de contexto e, fundamentalmente, sem atribuição
de sentido aos movimentos, ao corpo, objetos e função dramática, plenos de
energia, é esvaziado de sentido. A repetição, que costuma ser vista como forma
de esvaziamento de sentido, marca de oralidade" (SPERBER, 2009, p.236).
A
racionalização do homem sobre sua própria razão pode tornar o corpo morto de
sentido. Compreendemos que o corpo é parte constituinte da realidade do sujeito
que narra; e fundamental na compreensão de sua própria existência. O ato de
contar histórias também emerge dos rituais e das práticas cotidianas comungadas
corporalmente. Contar histórias faz parte da constituição das relações humanas
e a narrativa talvez tenha nascido justamente da necessidade de compartilhar um
acontecimento ocorrido ou uma história inventada. Antes mesmo da fala, o corpo
já se pronunciava com movimentos, mímicas, gestos. A história do sujeito está
inscrita em seu corpo. As histórias podem ser conhecidas ou não conhecidas. O
fato é que as histórias cantadas e/ou contadas corp(oralmente); ou grafadas em
poemas, contos fantásticos, textos literários, entre outras, fazem preservar
uma ‘pulsão de ficção’ (SPERBER, 2009).
Sperber
afirmou que “o inconsciente é mais conservador que a consciência”; o que nos
leva a cristalizar os conteúdos da inconsciência e, consequentemente, ao
aprisionamento do ego ao inconsciente (2009, p.28). Criando assim uma ausência
de consciência dos elementos negados pelo sujeito. Por isso, sobre a pulsão de
ficção – conceito inspirado na psicanálise freudiana – a autora fala que
precisamos ir muito além do familiar. Explica ainda, que os homens estão num
mundo padronizado, mas ainda sim, de alguma forma, todos querem ‘sair de si’,
no sentido de deixarem de ser escravos para alcançarem a emancipação: "O
esforço por ‘despertar o escravo’ que é esta voz silenciada, desafinada, tem
fundamento filosófico, psíquico, ficcional e educacional. E a idéia é
‘despertar o escravo’ estimulando o seu potencial virtual, cuja manifestação
maior é a pulsão de ficção. A pulsão de ficção é a necessidade imperiosa de
contar para atribuir um sentido, corrigi-lo, entender, ou tentar compreender.
Ao fazer isso, por meios que não são mais do que a palavra, são performance,
com uso de recursos como gestos, movimentos, palavras, linhas, cores, formas no
espaço ou na superfície plana, a pulsão de ficção cria imagens, usa símbolos
que, comumente, remetem a um passado histórico ou pré-histórico. É que, ao
mesmo tempo têm um sentido ancorado no evento pelo enunciador, compreendido
pelo receptor a partir da inserção do texto (ou da obra) no contexto do
presente histórico, do conhecimento, do pensamento, dos movimentos políticos,
econômicos, ideológicos, filosóficos, têm também um lastro no passado histórico
– este de duas naturezas: o passado histórico singular e o histórico
cultural" (SPERBER, 2009, p.236, grifos da autora). Para a autora, a
aprendizagem se dá por “caminhos de ida e volta, isto é, de enunciação e
escuta” (SPERBER, 2009, p.235). Sem um ou outro, não se elabora o saber. Se,
por um lado, é importante reconhecermos mitos, histórias e personagens famosos;
por outro lado, não inovar não permite outras relações além das empoçadas.
Arquétipos, símbolos, personagens são potentes para estabelecer vínculos entre
o sujeito e a cultura por ele habitada. Aquelas histórias que (ainda) não são
conhecidas possibilitam uma visibilidade daqueles sujeitos os quais são
invisíveis aos olhos da sociedade. As narrativas contadas por sujeitos “comuns”
fazem emergir certo mapeamento da subjetividade, que não o engessa na
totalidade do eu, mas dá indícios de algumas (in)formações consideráveis sobre
o sujeito. Nesse movimento de percepção da narrativa, dispomos de um saper,
saber-sabor. E no gosto encontramos um tanto de memória individual e coletiva
concomitantemente. Ou seja, na narrativa comparecem elementos particulares e
universais, aspectos socioculturais e, em certa medida, um pouco da
constituição da existência do sujeito que narra – existência vivida que forma a
substância das histórias.
Como
acirrou Benjamin, “O conselho tecido na substância viva da existência tem um
nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado
épico da verdade – está em extinção” (1994, p. 201). O lugar de reconstrução da
linguagem para a autonomia do sujeito, como proclama Desgranges (2010a), talvez
possa se dar tanto pelo reconhecimento da palavra como um domínio histórico
como ele escreve, mas ainda, pelo sentido da palavra na relação entre os seres
humanos. Neste sentido, a historicização brechtiana, faz-se no “abrir o diálogo
com o passado” (DESGRANGES, 2010a), num sentido benjaminiano; e na elaboração
do passado, num sentido adorniano.
"A elaboração do
passado como esclarecimento é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito,
reforçando a sua auto-consciência e, por esta via, também o seu eu . Ela
deveria ser concomitante ao conhecimento daqueles inevitáveis truques de
propaganda que atingem de maneira certeira aquelas disposições psicológicas
cuja existência precisamos supor nas pessoas [...] O passado só estará
plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que
passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje porque continuam
existindo suas causas" (ADORNO, 1995b, p. 48-49).
Para
Adorno, quando “a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na
adaptação ao existente, nisto reflete uma lei objetiva do desenvolvimento
[...]” (1995b, p. 33). O autor chamou atenção para que não rejeitemos o sentido
do horror e para que não receio ou medo no contato com a barbárie. Por isso, a
importância de elaborar o passado viria a ser uma forma de identificar os
sintomas da barbárie; e a criação de ideologias . A elaboração do passado é
reconhecer a importância do contexto histórico para compreender o presente
enquanto realidade antagônica.
METODOLOGIA
Desse
modo, diante da possibilidade de lidarmos com as narrativas orais, cremos ser
fundamental abordar um pouco sobre tal metodologia, tão polêmica no campo da História
Oral, uma vez que pode tratar de posicionamentos ideológicos. Respeitaremos a
trajetória de cada um, pois
"(...) nem todos viveram sua adolescência e sua
maturidade nas mesmas condições sociais e políticas, e os velhos tempos, embora
tenham igualmente passado, não são os mesmos para todo mundo. Do ponto de vista
de que há de mais singular em cada indivíduo, nenhuma testemunha se assemelha a
outra; também no plano social o leque é muito rico (GOLDMAN, 1998, p. 39)"
De fato a discussão com a fonte oral não é
nada fácil e, em função disso, nós nos preocupamos em aprofundar um pouco mais
na questão, para que o caro leitor se sinta mais familiarizado com nossa
abordagem. O trabalho com as narrativas orais é instigante, mas escorregadio.
Cada sujeito social traz consigo uma experiência social diversa, nutrido de
palavras e sentimentos que se apoiam no processo histórico por ele vivido.
Desse modo, quando fazemos uma entrevista, cabe a nós perceber que os fatos
históricos de um determinado período, de uma determinada sociedade, pode ser
percebido a partir da vivência de cada um desses sujeitos com os quais nos
propusemos a dialogar.
Levando
em consideração o modo como a fonte oral vai se consolidando, podemos dizer que
tanto entrevistador quanto narrador fazem parte da narrativa oral. No ato de
entrevistar, também nossa subjetividade constitui a fonte. O modo como
elaboramos nossa trajetória de investigação pode, muitas vezes determinar o
andamento do diálogo. Muitas vezes, inclusive, a história narrada e o modo como
abordamos o narrador, pode estar carregado de uma memória coletiva. Mesmo nas
narrativas literárias isso pode aparecer como no caso da autora Cora Coralina.
No caso da literatura de Cora Coralina isso é evidente. Seus textos abordam os
becos de Goiás e as lavadeiras do Rio Vermelho, localizado na Cidade de Goiás.
Entretanto, ela também faz alusão a momentos históricos demarcados pela
bibliografia tradicional que trata da história de Goiás. Não é acaso, portanto,
que os textos de Cora Coralina tenham sido reconhecidos como fundamentais pelo
Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, na década de 1950. Seus escritos
trazem o modus vivendi do povo goiano e ao mesmo tempo abordavam a cronologia
até então evidenciada (GOMIDE, 2007).
Diante
da gama de possibilidades apresentadas nas narrativas orais e literárias, cabe
a nós problematizar sobre a pluralidade da memória. Trata-se, portanto, de
muitas histórias e muitas memórias. Colocá-las no plural é fundamental.
Refletir sobre elas é fundamental! É o que nos apontam Déa Fenelon, Heloísa S.
Cruz e Maria do Rosário C. Peixoto, quando falam da trajetória de construção de
um projeto que repensava a relação entre memória e história:
"Afirmávamos...a
profunda relação entre história e vida e a figura do historiador, como um homem
do seu tempo. Assim, buscávamos retirar a História do campo da erudição neutra
ou da mera especulação do passado e a colocávamos no campo da política, no
melhor sentido da palavra. Em outro ponto do Projeto, buscávamos enfatizar o caráter
ativo da memória na construção histórica, portanto, no estabelecimento de
forças hegemônicas [...]" (FENELON, CRUZ, PEIXOTO, 2000, p. 6).
A
história está carregada de lutas sociais, de tensões, lutas políticas e
disputas por espaços. Memórias hegemônicas e alternativas podem se constituir
na vida cotidiana dos sujeitos sociais. Pode ser que a memória pública esteja
impregnada na sociedade. Podem produzir significados, às vezes até incorporando
a memória oficial. Isso indica permitir a interpretação das múltiplas memórias
e perceber que nossa noção de história está se refazendo a todo momento,
trazendo à tona permanências e transformações. Vista desse modo, a fonte oral
se constitui duplamente. Está carregada das experiências vividas por nós e
nossos narradores. Essa é uma maneira de admitir a contradição da história e
modo como ela vai se consolidando, nas suas tensões e transformações.
Nosso objeto é a mudança e por isso
enfatizamos a necessidade da revisão de nosso trabalho como pesquisadores
constantemente, evitando que deixemos de fazer um trabalho com problemáticas e
apenas caiamos na armadilha da utilização das narrativas como forma de corroboração
dos fatos históricos já estabelecidos. Assim, além das pesquisas
bibliográficas, valeremo-nos também de entrevistas estruturadas e narrativas
orais. Valeremo-nos de tais pesquisas para a criação da peça teatral.